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Colunistas

Um Domingo na Estrada nos anos 60  – As Coisas Simples da Vida 

Um domingo qualquer, na década de 60, um tempo em que as coisas simples da vida são um tesouro na memória.

Omar Dimbarre

Omar Dimbarre

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A noite ainda se despedia quando começaram a ressoar os primeiros acordes de uma sinfonia alada orquestrada pela natureza. O silêncio que pairava enquanto a cidade dormia, ampliava aqueles cantos, que preparavam o dia para amanhecer. O Vale do Rio do Peixe começava aos poucos a ficar iluminado, com os primeiros raios de sol descortinando o breu que se deitava por entre os morros e se espalhando lentamente por toda a região.

O concerto executado por sabiás-laranjeira, tico-ticos, bem-te-vis, canários e outros pássaros, invadia casas, embalando o sonho das pessoas que ainda repousavam e encantando aqueles que, já acordados, permaneciam sonhando.

A efervescente e esfuziante década de 1960 estava quase se despedindo e nós já morávamos na Rua José Bonifácio, uma rua acima da Santos Dumont, via central que corta  o coração de Herval d’Oeste. A estrada que passava em frente à nossa casa ainda era de chão batido, e os lotes eram grandes, contendo várias árvores frutíferas e outras pertencentes à mata nativa, que ainda cobria boa parte do Morro da Cruz — assim designado por ter, em seu topo, uma cruz iluminada.

O pai cultivava pessegueiros, pereiras, laranjeiras-de-umbigo, limoeiros, jabuticabeiras, entre outras plantadas pelos pássaros, que utilizavam seus galhos enquanto assobiavam suas encantadoras melodias.

O repicar do sino da Igreja Matriz de Herval d’Oeste, anunciando que a missa dominical estava prestes a começar, despertou os que ainda insistiam em continuar descansando, e suas batidas misturavam-se ao canto das cigarras que, em coro, sinalizavam que aquele seria mais um dia quente de verão.

Na cozinha, estalos secos de madeiras, acompanhados por um rugido quase murmurante, causado pelas chamas que queimavam a lenha dentro do fogão, misturavam-se ao aroma que exalava do café e se propagava por toda a casa, enquanto o rádio ressoava a voz do campo através das músicas de duplas sertanejas célebres na época.

As vozes dos cantores Tonico e Tinoco, cantando: “Eu nasci naquela serra, num ranchinho beira-chão. Todo cheio de buracos, onde a lua faz clarão. Quando chega a madrugada, lá no mato a passarada principia um barulhão”, entrelaçavam-se com a voz da mãe, que, emocionada, entoava a melodia junto, e, nesse ritmo, embalava os passos da família em direção a mais uma aventura na gruta Nossa Senhora de Lourdes, em Erval Velho.

Os preparativos haviam começado no dia anterior, assando e recheando com farofa a galinha que serviria de almoço, e acomodando-a junto com frutas e os guaranás Tubaína, que seriam consumidos durante o festivo dia de domingo. 

Tudo estava preparado para começar a jornada, mas, antes de sair, a mãe tomou umas duas ou três cuias de chimarrão, seguindo a tradição  trazida do seu Rio Grande amado. E lá fomos nós… O carro, um Ford 1954 preto, era já um tanto velho, desajeitado e maltrapilho, um pouco surrado. Foi apelidado carinhosamente pelo pai de Jaburu e Jabiraca. Dependendo do dia e da situação, um dos dois nomes prevalecia — e, às vezes, ambos.

Levava junto uma “multidão”. A Jabiraca era que nem coração de mãe: sempre cabia mais um, cabia todo mundo: mãe, pai, irmãos, tias, primas. E se aparecesse um desavisado de última hora, achavam alguma forma milagrosa de levá-lo junto.  Ajeitavam-se da forma que dava, e assim começava a aventura, com todo mundo feliz, contando causos e rindo muito.

Até que, após uma partida esfuziante, na não muito distante Volta do Maurício,  a Jabiraca começava a engasgar e a tossir e desmaiava. Apagava, e todo mundo saía do veículo, rindo, gargalhando e brincando, para empurrar. O pai costumava dizer que cabiam seis pessoas ali: “uma dirigindo e cinco empurrando.” Na verdade cabiam mais… Mais pessoas para empurrar.

O emocionante era o percurso — era a algazarra: descer, botar tudo para funcionar no tranco, misturar-se à poeira da estrada, cair, levantar, rir novamente… até a Jabiraca recobrar os sentidos.

Então, todos saltavam de volta para dentro, e a viagem seguia sua jornada embalada por histórias que contavam experiências pessoais, outras testemunhadas, algumas um tanto quanto surreais, às vezes flertando com o absurdo, entrecortadas por muitas risadas. E, quando algum daqueles relatos era contado de maneira tão efusiva ao ponto de tropeçar em devaneios, extrapolando definitivamente a realidade, gargalhadas altas se misturavam com a narrativa, fazendo aquele dia de domingo transbordar de felicidade. E, no meio daquela euforia toda, alguém resolvia iniciar uma cantoria, que logo era seguida em coro pelos demais viajantes.

Quando de repente... apagava de novo. E o ciclo se repetia: descia um, desciam todos, empurravam, caíam, levantavam, tentavam mais uma vez — até fazer o motor roncar novamente. E lá iam todos, de volta aos assentos…

Depois de muitos empurrões, finalmente, sãos e salvos, cansados, empoeirados e rindo muito, chegávamos ao destino. Erval Velho havia sido finalmente alcançado.

E a farra continuava, com árvores sendo desbravadas pela mãe, que, acostumada com uma infância vivida no interior, as subia com destreza, depois descia e pulava corda, tal qual nos seus tenros anos de infância. Adultos e crianças, tudo junto e misturado, brincavam de esconde-esconde, de pega-pega, correndo, pulando, sacudindo o corpo até não aguentarem mais, e o cansaço tomar conta. Então, o pai armava uma rede entre duas árvores e deitava para tirar um cochilo.

Até que, antes de o sol começar a se despedir no horizonte, chegava a hora de retornar. As energias já estavam quase todas gastas, mas havia o suficiente para empurrar a jabiraca quantas vezes fosse preciso, até chegar em casa.

Omar Dimbarre

Omar Dimbarre é rodutor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.


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